Há uns minutos que
comecei a sentir que estava a sair do escuro, calmamente e silenciosamente. Pouco
a pouco, do escuro passei para o menos escuro e comecei a ganhar de novo todos
os sentidos que até agora é como se tivessem estado desligados. Olhos fechados,
respiração calma e acertada, batimentos lentos, senti o ar a entrar-me pelas
narinas e a chegar aos pulmões, senti o corpo mole, senti o calor próximo de
mim. Ainda de olhos fechados inspirei o máximo que pude, aguentei o ar durante
três segundos e expeli-o. Senti uma respiração quente perto de mim mas não me
mexi. Neste momento já estava tudo claro, tão claro que consegui sentir uma
certa angelicalidade. Abri lentamente os olhos. Comecei a apreciar o silêncio,
a calma, o bem-estar e percebi que há muito tempo que não me sentia assim. Senti
os olhos começarem a fechar-se novamente quando de repente senti o calor de uma
mão a percorrer-me o braço. A mão parou no ombro. Do ombro foi até ao pescoço,
à orelha e acariciou-me o cabelo. Voltou a descer, e agarrou-me na cintura, até
que senti não a mão mas todo o braço a envolver-me e a puxar-me. Senti-me protegida.
E senti também uma espécie de luta interior a decorrer em mim. Há uma parte de
mim que ama estar aqui, que ama esta calma, esta serenidade, esta segurança.
Enquanto há outra que dá qualquer coisa por se levantar daqui o mais rápido
possível e correr. Correr porta fora, para bem longe. Neste momento é algo que
faria o maior sentido e mesmo que não fizesse, eu dava-lhe esse sentido de
coração e alma. Tudo porque é mais fácil dar o coração e a alma a uma certeza
que não nos arrancará as tripas e nos fará em cacos do que uma incerteza que
nos arranca essas mesmas tripas e nos faz em cacos. A incerteza do que virá, do
que será. Mais do que a incerteza é sem sombra de dúvidas o medo. Está em mim
combater o medo e desde sempre me foi imposto que tinha que o enfrentar e
empunho a espada e o escudo para tudo o que seja preciso, tudo excepto isto. Não
está na nossa condição de humanos sabermos lidar com isto, mas está o termos de
lidar com isto. Sempre tudo tão concreto e ao mesmo tempo sem qualquer nexo. É
um turbilhão de ideias neste momento. As palavras que querem sair e não têm
forças. O meu bichinho interior faz questão de as prender, faz sempre. É este
filho da mãe que faz com que tudo vá longe demais e não páre por onde deve
parar, no suficiente, no satisfaz. Talvez porque nunca me contento com o
suficiente mesmo que saiba que não dá para mais. Ou que não devia dar. Queremos
tanto que dê que construímos escadas de penas para subir até lá. Odeio-me agora
e sempre que me prenda por mais tempo aqui. Sei melhor do que alguma vez soube
que esta calma e esta segurança são tão boas para mim agora como será o fogo
amargo da discussão mais logo ou amanhã. Quero o impossível, quero o amor mas
quero o ódio também. Quero o desejo e quero o desdém. Quero as flores e os
vidros partidos. Quero o chocolate e o sangue. Quero a cama dele e a de outro.
Como posso eu querer amar alguém que ao mesmo tempo quero odiar? Este turbilhão
de pensamentos consome-me e por isso mesmo quero-me deixar dormir mas ao mesmo
tempo quero amá-lo olhos nos olhos e depois disso nunca mais lhe olhar na cara.
Estou em chamas mas tenho as mãos geladas e estou a tremer. Acordei no paraíso
e depressa viajei para o inferno. Quem poderá aguentar isto por muito tempo? Dois
anos e três meses eu tenho aguentado e neste momento não quero mais, mas ao
mesmo tempo quero tanto mais. Diga-se de verdade, sempre tem sido assim. Ele
olha para mim e eu para ele e sabemos os dois no meio desse olhar que queremos
mais. É o fogo no meio do gelo. No meio das nossas discrepâncias e faltas de
nexo entendemo-nos na perfeição. É a beleza no meio da feiura e da devastação.
É o abraço apertado que vem no final da discussão e quando eu deitada me
afasto. É o saber orientar diálogos e palavras mesmo quando não há novidades
nem mais frases e expressões possíveis. É a capacidade de inventar um mundo de
palavras e surpresas quando os nossos dicionários já se acabaram. É a
capacidade de reinventar onde outros tantos prefeririam substituir. E é isso
que nos distingue, certo? O querermos dar o fora mas estarmos cada vez mais
dentro, independentemente do tempo. Independentemente dos berros e virar de
costas, é o puxão inesperado no braço e o beijo quente que se segue. A vontade
no olhar, o trincar nos lábios, o bater de coração acelerado. Os gemidos e os
arranhões no meio dos lençóis. Sinto os olhos a fecharem-se novamente eis senão
quando o despertador toca. Faço-o parar antes que me consuma o resto da energia
que todo este ódio matinal já me levou. É assim que é suposto ser? Eu pegar em
mim e na minha hipocrisia e ir embora como se nada fosse? Fingirmos os dois que
nestes instantes que passaram não estivemos ocupados com explosões de
pensamentos tão depressa construtivos como destrutivos? É agora que a mão dele
me agarra a anca e me faz virar para ele. Os nossos olhos encontram-se e o
tempo pára. Não interessa o chegar a horas aos meus compromissos, o tomar o
pequeno-almoço ou a hipocrisia que ainda há bocado me assombrou. O que é que
interessa mais quando dois olhares se cruzam desta forma? O que é que é amar
alguém? O que é que é afinal amá-lo a ele? Não sei e deixei de querer saber. Mudei
a direcção do olhar, dei-lhe um beijo na testa, levantei-me, vesti a blusa e vi
o homem pelo qual rejeitei todos os outros, mesmo podendo ter todas as opções
do mundo e mesmo odiando-o quase todos os dias. Vesti as calças, calcei-me. Dei
um jeito no cabelo e passei o rímel. Ajeitei uma última vez a blusa e saí pela
porta. Só assim, sem diálogos, sem discussões, sem beijos em chamas, sem
abraços demorados, sem olhar sequer para trás. Saio com pensamentos de não
voltar e saio rogando-lhe todas as pragas possíveis. Saio pensando no quão suja
por vezes deixo a minha alma estar. Saio querendo que ele não exista mais na
minha vida porque simplesmente é isso que me apetece agora. Mesmo o tendo no
meu pensamento de cinco em cinco segundos. Saio, mas ambos sabemos que esta
noite dormirei na mesma cama onde acordei.
Redigido por: SusanaCMMelo
Comentários
Enviar um comentário