quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Mas quando é que isto acaba?

Ouvi-te chegar e fiquei parada à tua espera. A saudade que tinha de ti era equivalente a 10 anos ou mais sem te ver. E eu todos os dias esperava, com a fidelidade igual à de um animal, por ver-te chegar.

Todos os dias tinha uma surpresa para ti. Uns dias bolos, outros sobremesas, outros o almoço, o lanche ou o jantar, dependendo da hora a que te apetecesse chegar. E o mundo parava de rodar cada vez que esperava mais do que era de esperar por ti. Uma hora, duas, três… cheguei a ver-te chegar de madrugada, perdido, pelo meio dos raios matinais que se queriam fazer ver. E de todas as vezes, todos os dias, todos os meses e anos nunca me faltou um sorriso para te dar.

Um sorriso aqui, um murro ali.

Sempre quis pensar que com o tempo as coisas mudariam. Que melhorariam.

Chegaste a casa com o jantar posto na mesa, as velas do costume acesas e o meu melhor sorriso. Em pé, encostada ao balcão frente à porta, a contar os segundos até ouvir-te chegar. Quando finalmente te vi, soube que de todos os meus esforços não iria haver nunca algum que te fosse suficiente. E li-te a raiva nos olhos. Mais sabia eu como iria acabar.

Largaste tudo, dirigiste-te a mim, esbarrando em tudo o que se encontrasse no caminho e empurraste-me.

Aproveitei a força que fizeste em mim para me afastar de ti e correr o mais possível, mesmo que não houvesse muito para onde correr. Mas corri. Consegui chegar ao quarto e fechei a porta. Os teus gritos ecoavam pela casa, assim como as tuas ofensas e os teus murros.

E por entre tanto barulho eu só conseguia pensar no quanto eu gostava de poder apagar as luzes e jantar sob as velas, sem ofensas e ameaças. Mas a realidade já estava a ser sufocante, o meu corpo tremia e as forças consumiam-se. Eu sabia que a minha fraqueza ia ceder, como sempre, e já tinha o cenário todo mais que decorado. E eu sabia melhor do que queria acreditar que por muito que já conhecesse o guião todo e assim me pudesse esquivar, pois conseguia prever os teus próximos passos e antecipar a minha defesa (como quando me empurraste), não me podia nem conseguia esquivar de tudo.

Senti os meus braços e costas ceder, as minhas pernas fraquejar. Inspirei, uma prece rápida e uma engolida de choro. Mas já era tarde demais. Do quarto não havia para onde correr. A porta abriu, mal dei um passo de fugida, senti os cabelos serem puxados, consegui virar-me e por muito que tentasse, uma mão agarrou-me e apertou-me o pescoço. Uma mistura entre calor e frio, uma mistura entre a vontade de lutar e a de me deixar ficar. Olhei-te nos olhos na esperança de te conseguir ler, mas não havia nada com que me pudesse familiarizar. A raiva que tanto tinhas dentro de ti nunca a consegui perceber. E por breves instantes me lembrei de quando quem fazia as surpresas eras tu e que quando as fazias eram rosas e poemas, no teu mais belo e encantador “eu”.

Mas rosas e poemas não duram uma vida, e no meio de toda aquela confusão deixei de me debater e de tentar, ainda que de forma impossível, engendrar uma forma de escapar de ti.

Apaguei-me. Larguei as poucas forças que me restavam e deixei-me ali. E no meio das minhas lágrimas sussurrei a Deus que fosse dessa vez que levasse a minha alma.

Mas não levou.

Perdi-me no meio do tempo e do espaço e desejei, por mais uma vez, nos segundos que me restaram de lucidez poder evaporar-me.

Entre o céu e a terra foi onde Ele me pôs. A claridade que vem das janelas arde-me nos olhos.

Chamo-me Laura, tenho 25 anos, uma costela partida, um ombro deslocado, um olho inchado e nódoas negras e dolorosas por todo o corpo. E, como de todas as vezes, flores e cartas ao fundo da minha cama de hospital. Flores que nunca mais acabam e que só de olhar me deixam enjoada.

Nunca o consegui perceber. O porquê de numas vezes aquilo a que durante tempo me iludi chamando de amor, e noutras vezes tanto ódio? Que mal fiz eu? Onde é que eu errei? Qual é a minha falha de toda a vez em que mudaste o teu olhar para algo demoníaco? De toda a vez em que me sorrias e logo a seguir me batias como se me odiasses? Onde está o príncipe do nosso início, onde está o cavalheiro que prometia mundos e fundos? Tivesse eu sabido logo de começo como iria ser, não tivesse eu tido toda a ingenuidade que tive. Quem sabe não estaria agora a rezar por mim própria, para que os meus olhos se fechem e nunca mais abram. Soubesse eu do teu ciclo vicioso e doentio, de como me chamas fraca mas fraco é o teu ser. De como alguém consegue ser tão horrivelmente doente. E por “amor” achamos que ficamos. E de “amor” nada sabemos. Porque no amor não há disto, no amor tem que haver respeito e uma mão cheia de coisas que não sei bem o que são, mas que não interessam muito só porque na primeira já tu pecaste mais de mil vezes. E dos mundos e fundos, só lhe vi os fundos.

E a claridade está-se-me a dissipar. De repente ficou tudo turvo, a querer escurecer. Dói-me o corpo e a alma e de tudo o que me dói já nem sei onde dói mais. Sinto-me como a escorregar pelos lençóis, a cabeça a andar à roda, o sangue a fervilhar e ao mesmo tempo a regelar.

Tenho uma hemorragia interna grave.

Mas quando é que isto acaba?






Redigido por: SusanaCMMelo



quarta-feira, 2 de novembro de 2016

É legítimo?


No meio dum dia sofrido no meio de lições esquecidas, disseram-me que a nossa vida só nós controlamos e que, se há algo por que estamos a sofrer, que temos que ter em conta se realmente vale a pena sofrer por isso ou se é apenas o nosso coração a iludir-nos. Mas que no meio de tudo, que não nos deixemos humilhar demais nem moldar demais, senão um dia olhamos para trás e perguntamo-nos como chegámos a esse ponto e nem nos reconhecemos mais. Que no entanto, só nós sabemos o que vale a pena e até quando vale a pena.

E no meio de um quarto escuro ainda consigo lembrar-me de choros, gritos e cheiros antigos. Ainda consigo sentir as cicatrizes antigas. E de cada vez que sofro, sofro por todas elas. E que de cada vez que me é feito sofrer, sofro em memória a quem deixei nas páginas de livros já lidos. O meu avô dizia que quando eu arranjasse um namorado a sério, que tinha que ser um homenzinho. Que tinha que ser alguém que me cuidasse e amasse. E ele abanava a cabeça como quem sabe que hoje em dia as pessoas se dão umas demais e outras de menos, mas que acabamos todos por mais cedo ou mais tarde já nem nos dar.

Não nos damos porque ficámos sofridos, em algumas das páginas e porque não fechámos o livro, porque talvez decidimos continuar a lê-lo independentemente do mal que nos estivesse a fazer, porque na altura não o reconhecíamos como mal, mas sim como uma hipótese de ver a história a mudar. Ficámos sofridos e pior que ficar sofrido é fazer sofrer. Fazer sofrer quem por nós travaria as maiores guerras e atravessaria os maiores desertos, pularia de estrela em estrela e mesmo de cara esmagada no chão, se levantaria para nos proteger. E daí vem o destino, o fazer doer a quem já doeu demais e o não conseguir evitar que não faça doer. Daí vêm corações partidos e mentes desacreditadas.

Escrevi algures que acredito em amores para a vida, no “felizes para sempre”, ainda que discutam, e que no meio de tanta promiscuidade, possa haver um homem em mil e uma mulher em mil que acreditem no amor e que esse homem e essa mulher um dia se possam encontrar. Mas também escrevi que o amor não existe hoje em dia. Que independentemente do que aconteça há sempre alguém melhor, mais bonito e mais acessível. E que tentar custa muito, que amar na verdadeira definição da palavra é quase que impensável. Já não se sente e já não se pensa. Costumo tentar acreditar que quando se gosta, se pode fazer crescer e se pode trabalhar em conjunto no que se tem. Porque ninguém rema contra a maré e porque para dançar o tango são precisos dois. Porque acredito que podemos sempre investir no que temos seja em nós ou em algo que seja nosso, ou a que possamos de algum modo chamar nosso. Nada de deitar fora nem trocar. O meu pai, ao longo do tempo em que vivi com ele, de toda a rara vez em que me ofereceu alguma coisa sempre fez questão de dizer que era a primeira e última vez que me dava o que quer que me estivesse a dar. Que se eu partisse, estragasse, perdesse ou fosse o que fosse, não voltaria a ter outro igual. Passou por brinquedos, livros, telemóveis, qualquer coisa que viesse dele. Fui ensinada com o culto do “estima para durar” acompanhado do “um dia vais dar valor” e do “para ti é”. Hoje em dia, percebo que esse culto realmente é uma forma de estar na vida. Tão depressa posso ganhar como posso perder. Passe por trabalho ou namoro, o que seja. Mas que, se eu fizer por e lutar por, as probabilidades de ser eu a ganhar serão maiores. E ele nem estava errado de todo, visto que, de todas as frases que ouvia do meu pai, hoje posso aplicar sempre uma para todas as situações, ainda que boas ou menos boas.

E então, o que acontece quando, depois de um coração partido por mil vezes, nos voltamos a dar a alguém, ainda que aos tropeços? Ainda que, por muito esforço que possamos fazer na viagem, nos tentemos dar o melhor inteiro de nós que consigamos arranjar, ainda que colado com cuspo? E o que acontece quando, o destino junta ou pensa que junta dois corações partidos? Será que é de alguma forma legítimo para connosco nos reservamos a certas coisas e afastarmos outras tantas? Fazer sofrer, ainda que inconscientemente, porque estamos ou fomos sofridos? Fazer pagar quem de nada culpa tem, por erros por outrens cometidos? Haverá algum livro de amor ou simplesmente de ajuda que nos indique o degrau a seguir? Como, se “cada um é como cada qual” e “as relações são todas diferentes”? Será que somente um sexto sentido e as energias interiores dão conta do cargo? Ou será, que sequer, alguma vez, um coração poderá ser reabilitado?

Respostas escassas para perguntas que a cada quarteirão se triplicam num dia em que de sofrido já não podia ter mais nada e que em nada um quarto escuro me poderia ajudar. E são mais as voltas e os cigarros que as conclusões. São mais os desassossegos de coração que a vontade de dormir à noite. É legítimo pagarmos pelo passado de alguém?

Sinceramente, a melhor definição de amor que alguma vez ouvi foi numa noite em que já nem me lembro como acabou. E honestamente nem me lembro da definição em si, mas sei que soou bonito.

Soou a algo sincero e de certo modo magoado. E porquê que tem que haver beleza naquilo que foi estragado? Ainda que de belo possa haver um olhar ou um sorriso aleatórios, que vêm inesperados, de alguém que julgamos não nos conseguir olhar ou sorrir em certas alturas porque de demónios têm o cérebro e o coração cheios?


Será que, ainda que por breves instantes, em algum universo paralelo, onde todas as matemáticas batam certo e todos os sentimentos sejam puros e bem desenhados, possa haver a pequena possibilidade de o meu eu não estar a ter um dia de merda?




Redigido por: SusanaCMMelo