domingo, 7 de setembro de 2014

Por favor




Já passaram 4 dias desde que fizemos anos e eu não consigo deixar de pensar na tua voz ao telefone. Foram poucos os aniversários que passámos juntos, mas gravo esses poucos bem no meu coração. Reza a lenda que quando eu estava na barriga da minha mãe tu disseste que eu iria nascer no teu dia, e assim foi. Tenho orgulho de poder ter tido a oportunidade de me ensinares a ser parte de quem sou. Tenho orgulho de poder dizer “foi ele, foi ele que me pôs a escrever o abecedário e a fazer frases soltas em mais de 5 cadernos de linhas estreitas para eu aprender a ter uma letra bonita”; tenho orgulho de poder dizer “foi ele, foi ele que me fez saber a tabuada de cor e salteado, de forma que até a podia cantar”; tenho orgulho de poder dizer “foi ele, foi ele que me fez saber todos os reis de Portugal, os seus cognomes, as suas datas e os seus feitos”; tenho orgulho de poder dizer “foi ele, foi ele que muitas vezes me ensinou a ser desenrascada”; tenho orgulho de poder dizer “foi ele, foi ele que me melgou tanto que passei a ser assim respondona” e mais tantas outras coisas. Nunca conseguiria lembrar-me de todas elas porque foram imensas. Lembro-me das mil e uma maravilhosas histórias que sempre me contaste, a quantidade de vezes que eu achei que não eram verdade de tão incríveis que eram. Nunca me hei-de esquecer da emoção com que as contavas… desde a história da tua linda professora da primária que tinha um feitio duro (a Dona Branca que dava reguadas nas mãos) até às tuas histórias como Marinheiro, passando por aquelas em que falavas da tua ida para uma espécie de escola interna, onde passaste do nada ao tudo; ou dos tempos em que eras o melhor da tua classe, da altura em que conseguiste ter um 20 com um professor que só dava catorzes “porque sim”, e quando viu o teu teste quis-te fazer perguntas orais para realmente ver se não tinhas copiado e pronto, lá foi ele obrigado a dar-te o 20 porque tu tinhas estudado t-u-d-o e sabias tudo na ponta da língua; ou dos tempos em que foste enfermeiro e que todos os marujos e afins gostavam de ti; ou de seres tão convencido que dizias que “todos os cães te adoram” e de contares histórias em que os cães iam ter contigo a pedir-te comida, festas e ajuda… enfim, lembro-me do “bom falante” que sempre foste, gostavas de meter conversa com toda a gente e contar toda a tua vida em meia hora, sempre com aquele teu sorriso engraçadinho e o teu andar confiante. Tenho saudades disso, avô. Custa ver as mudanças e ter noção delas, mas custa ainda mais não poder fazer nada. Apesar de alguns teus hábitos continuarem os mesmos, vão-se atrasando. Enquanto outros já se vão perdendo. Já não te levantas às 9h da manhã para ires à cozinha beber o teu copo de água cheio, que acreditavas fazer uma limpeza ao sistema. Já não fazes aquele docinho sumo de laranja pela manhã. Já não comes os teus cereais. Já não aqueces o teu leite. Já te esqueces de tomar os teus comprimidos. Já nem pões os teus comprimidos. Já não cuidas do jardim, não regas as plantas e não lavas a varanda. Já não usas o chapéu à cowboy. Já não lês o jornal, nem sequer A Bola. Já quase sequer não lês. Já não arrumas os teus papéis do escritório. Já não lês os teus livros sobre as monarquias e tudo o mais. Já não apontas tudo nos teus cadernos grossos de capa preta com tinta da china. Já não sabes onde metes os óculos. Já só estupidificas à frente do teu plasma de quê.. 2 metros. Já não sabes onde metes o comando e culpas toda a gente. Já não fazes as tuas contas. Já não controlas as portas todas e escondes todas as chaves. Já não tens preferência quanto à camisa que queres vestir ou quanto à camisola de interior que tem um buraquinho feito por uma traça. Já não engraxas os sapatos. Já não apertas o cinto. Já não apertas os botões. Já não metes o boné. Já não tens força nem invenções para descalçar as botas. Já não transportas as chaves de casa contigo quando vais à rua. Já não tens aquela opinião crítica quanto a tudo, avô. Essa opinião crítica que toda a gente odiava estar sempre a ouvir porque no fundo ninguém gosta de ter alguém por perto sempre a reclamar de tudo, mas com um fundamento racional. Agora apenas reclamas que te roubaram o comando da televisão, ou que te roubaram a bengala. Onde te perdeste, avô? Por favor, reencontra-te. Quero ouvir mais histórias, saber mais coisas, passar mais tempo contigo. Quero ouvir histórias sobre quando vias a Amália Rodrigues nas ruas de Lisboa, quero ouvir sobre a vida na antiga Rodésia! Mas cada vez é mais complicado… Já te faltam muito as palavras, falta muito a capacidade de manter um diálogo. Perdes-te, baralhas-te, esqueces-te dos nomes das coisas e das pessoas. Onde estás, avô? Onde está aquela mente brilhante que conheci? Aquele homem responsável e organizado, com uma enorme sede constante de cultura e de socialização. Onde? Por outro lado posso dizer que ainda continuas a descarregar o sal na comida e o açúcar no leite. Posso dizer que, continuas a usar o Johnson’s baby como champô porque acreditas piamente que é o único champô que não te danifica o cabelo… todo o resto são químicos estúpidos e inúteis que vulnerabilizam o cabelo. Posso dizer que, continuas com uma pancada louca por bolos de arroz. E que, para ti continua tudo mal feito quando é feito pelos outros. Não te deixes perder mais, avô. Eu sei que sou fria, muitas vezes inflexível e também impaciente mas confia que te amo, vô. A ti e à avó. A avó que sempre foi uma mulher calada mas inteligente, que quando abria a boca falava coisa séria e acertada. Poucas vezes a vi sorrir, mas posso garantir que ainda hoje tem um dos sorrisos mais bonitos que já vi. Como ela nunca foi de grandes conversas limito-me a saber que foi uma excelente costureira, que é da Beira e que tem uma alma pura. Também ela se perdeu, já há alguns anos. E eu lamento, lamento que seja assim. Magoa-me de toda a vez que vocês me perguntam a mesma coisa com intervalos de 2 minutos, porque assim a doença o exige. Magoa-me que haja dias em que eu tenha que dizer “não, avó, eu sou sua neta”. Mas o que se pode fazer? Não se pode ensinar, não se pode mudar, não se pode nada. Apenas se pode aceitar, respeitar e ajudar, sempre com o maior carinho e amor possíveis. Amo-te vô, amo-te vó e arde-me, dói-me, pica-me, tortura-me ver-vos assim. Se eu pudesse voltava aos dias em que dormia lá em casa no teu escritório, avô. Naquele sofá-cama onde a avó me dava as boas noites e me contava a história do gato maltês, que acabava com um “quer que lhe conte outra vez?” e eu dizia sempre “sim”, e ela voltava ao início da história todas as vezes. Quando eu me fartava, ela ajeitava-me o lençol e o cobertor, diminuía a intensidade da luz do candeeiro e saía. Dias esses em que eu não chegava à mesa da cozinha e não assentava por 5 minutos o rabo na cadeira, então íamos lá para fora para eu comer e ao mesmo tempo poder andar aos saltos, a imitar todo o tipo de animais. Dava uma volta com a papa na boca enquanto imitava um animal e quando voltasse tinha de ter a boca vazia para voltar a ser enchida com papa. E eu fazia disso a maior diversão do mundo, sempre com a avó mais paciente e preocupada do mundo. Tantos anos que passei lá em casa, tantos anos que vos tive a cuidar de mim… Tantos anos guardados em memórias. Que é feito de vocês? Que é feito de nós? Não sei que faça. Penso várias vezes na situação em que vocês estão e aflijo-me porque não quero tempo desperdiçado, não quero sentir que perdi tempo ou que não fiz por vocês o suficiente. Custa ver, avô, custa ver que a tua situação se degradou depois da da avó mas de forma mais rápida e pior. Custa dar-te um “parabéns” e em troca ouvir um balbucio qualquer, e até mesmo um “parabéns pelo quê? Não fiz nada…”, custa ouvir que quando outras pessoas que não eu, te dão os parabéns tu digas “para vocês também”. O nosso corpo com a idade trai-nos e por isso perdoa-me se ponho a culpa em ti. Ou em vocês os dois, avô e avó. Apesar de tudo fico contente quando se lembram de me chatear e se põem com perguntas como “então, quantos namorados é que tens?” e “já reparaste que a tua irmã está maior que tu?”. São perguntas que vocês sabem que me vão chatear mas eu fico contente porque ao fazerem-nas significa que naquele momento, o vosso estado permite-vos ter a consciência de “vou chatear a Susana”. Por isso, façam-nas, tirem-me do sério se isso por uns momentos vos traz a lucidez de volta. Não se percam mais, por favor. E mandem o alzheimer lixar-se.


Peço desculpa pelos tu’s e vocês’s aqui usados. Se alguma vez este texto chegasse aos vossos olhos, queiram saber que continuo a manter a 3ª pessoa do singular e do plural para convosco, que foi completamente algo “off the record” que decidi publicar, mas o respeito continua o mesmo.



Redigido por: SusanaCMMelo